IFRS x Legislação Fiscal

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Discussões tem tomado conta dos bastidores da classe contábil a respeito da necessidade de efetuar escrituração em conformidade com as Normas Brasileiras de Contabilidade, proveniente das Normas Internacionais – IFRS. Primeiramente, lembramos que a obrigatoriedade de escrituração contábil já está claramente estabelecida há tempos, tendo o contador responsabilidade civil, profissional e ética (mesmo que legislação tributária específica a dispense, por exemplo, Simples Nacional).

Como já é de conhecimento, a justificativa para a necessidade de IFRS tem como cenário o atual momento de conjuntura econômica onde o contador tem papel fundamental: o desenvolvimento da economia, o aperfeiçoamento e integração dos mercados, a facilidade de acesso ao capital, a defesa de direitos de propriedade, o combate a corrupção. Neste cenário aumenta a necessidade de prestação de contas e compliance, fazendo com que a demanda de informações seja fortemente alterada em termos de tipo, quantidade e qualidade. As informações que a contabilidade gerava há pouco mais de 10 anosjá não são pertinentes hoje (alguém sente falta de DOAR ou reserva de reavaliação?).

Este debate tem como pano de fundo o ambiente brasileiro de burocracia estatal em excesso, que provoca efeito nefasto e hostil aos investimentos.Este ambiente é perigoso pois, na atual globalização com economias integradas, países presos a tais entraves ficam para trás. Como dizia um famoso economista: “o capital é como água, flui para onde tem menos obstáculos”.

 Vejamos o ranking de melhores países para se fazer negócio (Doing Business, Forbes). O Brasil, mesmo com todo seu potencial econômico, costumeiramente se posiciona pra lá de 100º. Temos o hábito de perder para Peru, Indonésia, Jamaica, Vietnã, Mongólia, Tunísia, Zâmbia, Costa Rica, Marrocos, Kenia, entre outros.

As IFRS contribuem para que as necessidades descritas anteriormente, como combate a corrupção, transparência, prestação de contas, compliance, entre outros, sejam enraizadas na cultura empresarial, melhorando o fluxo de capital e de informações. Não é justo cobrarmos estes valores apenas dos três poderes, pois devem fazer parte do dia-a-dia dos negócios. Tratam-se de condições essenciais (entre outras) para fazer fluir o capital e, com isto, gerar outros benefícios sociais. Suprir estas necessidades podem nos ajudar a galgar mais posições no ranking ao tornar os negócios mais transparentes (reduzindo obstáculos para que a “água” flua para cá com mais facilidade).

A questão que surge é: Não poderíamos efetuar a contabilidade conforme apenas regras fiscais e tributárias? E analisar a gestão das empresas conforme as informações geradas mediante estas regras? A resposta enfática é um sonoro NÃO!

Hoje, a filosofia das Normas Contábeis está fortemente baseada na essência econômica dos fatos. Ou seja, interpretar e julgar as situações conforme a realidade intrínseca e as particularidades dos negócios do ponto de vista econômico (que pode ser diferente do jurídico, que o diga o arrendamento mercantil). A contabilidade efetuada conforme a essência econômica está mais próxima de princípios de finanças e economia do que aquela efetuada conforme normas jurídicas.

A primazia da essência sobre a forma é crucial para análise financeira e econômica. Ela que deve ser utilizada para gerar informações ideais à gestão empresarial. Indicadores financeiros podem ficar fortemente deturpados, prejudicando as análises e decisões estratégicas, se a contabilidade for efetuada obedecendo a forma jurídica e não a essência econômica. Vejamos um exemplo. Em casos de indústrias, o Imobilizado é um importante e relevante item que certamente irá influenciar análises, avaliações e decisões. Se tal imobilizado não passou por teste de impairment, não dá para acreditar nos números constantes no Balanço Patrimonial. Ou seja, a não aplicação do teste em nada burlou a legislação fiscal, mas em muito prejudicou a gestão empresarial. Atentar-se à qualidade e ao pleno funcionamento dos imobilizados é essencial para a dinâmica industrial, mas inútil para a legislação fiscal. Resumindo: o correto acompanhamento da saúde financeira das empresas só se dá mediante relatórios contábeis que dê preferência a essência econômica, e não à forma jurídica. Pois a essência econômica mais se aproxima de princípios de finanças e economia. E para entender esta essência é necessário julgamento conforme cada negócio e setor, ótima oportunidade para que o contador se aproxime cada vez mais da gestão empresarial e análises estratégicas.

Aliás, é relevante lembrar que esta habilidade de julgamento aliado a pensamento crítico está entre as atribuições necessárias ao profissional em um ambiente de negócios em constante mutação, conforme aponta o Fórum Econômico Mundial. Estas habilidades são importantes ao contador, já que, do ponto de vista de Normas Contábeis, não se tem mais o hábito de práticas padronizadas para contabilização (como regrinhas de limites ou tabelas de percentuais). A obediência a tais Normas exige julgamento e conhecimento dos negócios para atribuir o melhor tratamento.

Mas e as normas fiscais e tributárias, ou digamos, contabilidade tributária, não tem sua importância? Sim, continua com o Estado o direito legal e constitucional de tributar. Mas tais regras não devem se sobrepor à gestão empresarial. Regras fiscais tem mais haver com a forma jurídica do que com a essência econômica. Tendo em vista a ampla gama de usuários da contabilidade, não podemos efetuar relatórios financeiros para agradar apenas a um grupo. Por isto as Normas Contábeis utilizam a expressão “Demonstrações para Fins Gerais”, como aquela que mais se aproxima do agrado de todos os usuários. Estas demonstrações serão ajustadas ou complementadas conforme os interesses de cada grupo.

Assim, precisamos gerar informações financeiras que satisfaçam os processos decisórios dos administradores. Depois é que efetuaremos ajustes nestas informações para o correto cálculo de lucro tributável (neste momento sim, obedecendo à legislação fiscal). Convenhamos: lucrar e crescer é o primeiro propósito de todas as empresas. Pagar impostos é mera consequência. Vamos confirmar? Pergunte a um empresário o que ele tem a dizer sobre isto!

Então, é preciso reconhecer que contabilidade societária e tributária são ambas importantes, mas cada uma com seu devido papel. A primeira auxilia a administração das empresas e prestação de contas (e digo “primeira” porque ela realmente deve vir primeiro). A segunda apura impostos através dos ajustes determinados pela legislação fiscal. O conjunto de princípios e raciocínios para executar cada uma são diferentes. Somente a primeira dá subsídios suficientes para o acompanhamento gerencial dos negócios.

É uma pena que infelizmente o Brasil, por teimosia, mantém contabilidade dupla: uma oficial seguindo Normas Contábeis e outra paralela para fins única e exclusivamente tributários, sendo que esta última obedece legislação de 2007 congelando o processo de transição.Tal atitude aumenta a insegurança jurídica dada a complexidade das práticas de e-government com qualidade duvidosa (mais uma barreira para impedir que a “água” flua).

Neste cenário, todas as empresas devem efetuar escrituração contábil, em primeiro momento, conforme as Normas Contábeis e não fiscais. Acesse aqui: Normas Contábeis e porte das empresas. São estas Normas que irão gerar informações úteis ao processo de tomada de decisão e acompanhamento gerencial. Depois é que vem as regras tributárias para cálculo de impostos sobre lucro, por exemplo, através de ajustes conforme a Lei 12.973/14.

A respeito da relevância das IFRS no cenário profissional, é importante enfatizar que o Pronunciamento Técnico CPCPME (R1) (NBC TG 1.000 (R1)), para pequenas e médias empresas, também é proveniente das Normas Internacionais, no caso trata-se do “IFRS for SME´s”, ou IFRS para pequenas e médias empresas. Ou seja, não valem afirmações do tipo “IFRS/CPC é só para S.A´s” e outras do gênero.

Finalmente, entendemos que a adoção das IFRS trata-se de uma modernização e valorização da profissão contábil. Não podemos ignorar este mundo em constante mutação, já que as demandas por informações mudam conforme mudam o ambiente econômico.

Vivemos a era da Quarta Revolução Industrial (ou Indústria 4.0), que é marcada por avanços a plena velocidade. As mudanças já não são de geração para geração. Elas ocorrem em prazos curtos, pouquíssimos anos. Não dá para gerir os negócios ignorando os impactos do mundo conectado, inteligência artificial, big data, business inteligence, blockchain, internet das coisas, internet 5G, entre outros.

Como é possível negligenciar teste de impairment (CPC01 (R1) e CPCPME (R1) Seção 27) em ambiente de constante revolução e mutação tecnológica, inovações para eficiências operacionais e robótica avançada?

Como é possível menosprezar ativos intangíveis (CPC 04(R1) e CPCPME (R1) Seção 18) em ambiente de forças competitivas, poderes de marcas, networking, capital humano, pesquisa e desenvolvimento?

Como é possível ignorar ajuste a valor presente e valor justo de instrumentos financeiros (CPC12, CPC 39, CPC 40(R1), CPC 48 e CPCPME (R1) Seções 11 e 12) em um mundo financeiro cada vez mais moderno e integrado, com amplas possibilidades de crédito e produtos financeiros exóticos?

Como é possível, em um país de forte potencial de agronegócio como o Brasil, menosprezar ativos biológicos e produtos agrícolas? (CPC29 e CPCPME (R1) Seção 34).

E podemos ir mais além. Dada a diferença de abordagem entre regime de competência e regime de caixa, por que atribuir importância apenas ao primeiro? Como é possível manter uma visão excessivamente focada em lucro e deixar de lado a visão com foco em fluxo de caixa (DFC) que tem forte poder explicativo sobre a dinâmica financeira? (CPC03 (R2) e CPCPME (R1) Seção 7).

A aplicação das Normas Internacionais de Contabilidade – IFRS contribuem para agregar valor às empresas por elevar a confiança dos proprietários e credores e reduzir o custo de capital. Empresas e profissionais que dimensionam esforços para estas práticas gerarão informações mais relevantes para a condução dos negócios. Tais informações, baseadas na essência e não na forma, irão auxiliar a excelência na gestão ao proporcionar subsídios para análise de inovações. A contribuição tende a chegar até o surgimento de melhores produtos e serviços para a sociedade. Como num círculo vicioso: melhores informações conduzem a melhores decisões, que geram melhores resultados, e com isto mais empregos. O benefício é claro: quem ganha são todos!

O desafio de valorização da profissão está lançado! E aí quem está fazendo sua parte?